O secretário Moedas e a desgraça portuguesa vistos de duas faces

Carlos Moedas, foto oficial in www.portugal.gov.pt

O “Expresso” de ontem publica, em dois distintos cadernos, duas entrevistas que importa assinalar pela profunda interligação delas e pelas duas faces que elas representam da problemática que o entrevistado na primeira faz de conta que não coexistem fatalmente.

A primeira, publicada no primeiro caderno do semanário, tem como co-autor o secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, Carlos Moedas, apresentado como o homem que “vigia o cumprimento do memorando” entre as tróicas internacionais e a tróica nacional.
A segunda, publicada no caderno de Economia, tem como entrevistado o coordenador do Observatório Económico e Social da ONU para o Sul da Europa, Artur Baptista da Silva.  
O título-citação da primeira – “Reestruturar a dívida nunca esteve em cima da mesa” – é elucidativo da frieza com que o vigilante do cumprimento do pacto de agressão encara a sua própria missão e da irredutibilidade insensível ao sofrimento dos seus compatriotas com que este missionário do capital financeiro está disposto a continuar a conduzir-nos ao abismo.
O título da segunda – “Se Portugal não nego agora irá fazê-lo daqui a seis meses de joelhos” – comprova bem as avisadas previsões de um vasto conjunto de pessoas, de variadíssimas formações e diversificados posicionamentos político-partidários se o Governo e a União Europeia não mudarem radicalmente a agulha deste comboio suicida.
Vale a pena reter algumas passagens significativas e mesmo algumas notas, especialmente sobre a primeira personagem, que constam da, digamos, “entrevista”.



A primeira nota é a de que realmente a “entrevista” foi respondida por escrito. Portanto, está despojada de qualquer sílaba que revele um grão de emoção, de qualquer deslize sentimental e humano.
A segunda nota vai para o facto de o entrevistado/co-autor do texto não se coibir de reivindicar para si um papel verdadeiramente messiânico. Perguntado sobre se “se o programa (coma tróica) for integralmente cumprido considera a sua tarefa governamental terminada”, Carlos Moedas, com a frieza e a “ponderação” da resposta escrita, desfere: “Sou um homem de missões e esta é a minha grande missão. É nela que concentro todas as minhas forças.”.
Tal resposta de Carlos Moedas, engenheiro civil metamorfoseado sacerdote da finança na alta escola de Harvard, assusta pela obsessiva assertividade e pelo que parece revelar da personalidade de um homem que eu talvez jamais queira ter o prazer de conhecer pessoalmente, ou sequer de privar com ele minutos que sejam.
As restantes respostas tão-pouco tranquilizam.
Como não podia deixar de ser, repete o chavão do Governo “estamos no caminho certo” e, como o ministro Gaspar, a desculpa antecipada do falhanço que todos sabemos que está a acontecer: “vivemos tempos de grande incerteza nos quais é imprudente antecipar resultados ou medidas”.
Perguntado sobre se alguma vez foi discutida com a tróica a possibilidade de uma reestruturação da dívida, responde: “O facto de esse cenário nunca ter estado em cima da mesa é a prova de que o nosso ajustamento está no bom caminho”.
E, adiante, questionado sobre se, no final de 2014, a tróica se vai embora e se Portugal fica melhor, diz: “Sim, se continuarmos este caminho com determinação e se o programa continuar a ter a capacidade de adaptação à conjuntura, então estou convicto de que o programa acaba em 2014 e que Portugal sairá desta crise sem as fragilidades estruturais com que para ela entrou”.



Ora, vejamos o que diz Artur Baptista da Silva, sem considerações adicionais e transcrevendo excertos muito importantes da entrevista, pela ordem das perguntas e respostas.
Sobre o receio de uma mancha de pobreza extrema na Europa: 
“É preocupante que aos 780 milhões de pessoas que vão morrer este ano de fome, se juntem novas bolas de pobreza em países que estão no primeiro pelotão do desenvolvimento humano. Como é possível, no mundo rico, aparecerem bolsas de pobreza de milhões de pessoas com menos de sete euros por dia? Em Portugal, são dois milhões. É o limiar da indigência”.
Sobre a proposta da ONU de renegociação dos termos da “assistência” a Portugal: 
“Não é possível que, em cada avaliação da troika à Grécia e a Portugal – como acontecerá também com Espanha e Itália no futuro –, se venha reconhecer que está pior do que estava antes. Mas se continue a avançar”.
Sobre a afirmação da tróica de que Portugal está a cumprir o fixado no programa: 
“Sim, mas os resultados são péssimos”.
Sobre a proposta da ONU de renegociação da parte do sobre-endividamento devido a razões externas, isto é, das condições impostas pela Comunidade Europeia para acesso aos fundos estruturais entre 1986 e 2011: 
“(…) 41% do total da dívida soberana que calculámos advém da obrigatoriedade do cofinanciamento pelo Orçamento do Estado. (…) Os nossos credores europeus (…) sabiam que esse dinheiro teria de ser emprestado (…) e foram eles que definiram as regras do serviço da dívida”.
Sobre a fórmula para a renegociação proposta pela ONU: 
“O que propomos é separar claramente a dívida que resulta da má gestão política dos governos locais da que é da responsabilidade das autoridades europeias. A EU sabia qual era o nosso défice e o nosso nível de endividamento, e continuou a dizer que para Portugal ter acesso aos fundos comunitários teria de se endividar a juros de 5% e 6% junto dessa mesma União. E assim se chegou a 340% do PIB de endividamento global. (…) O que nós sugerimos é que se suspenda o artigo 123 dos Estatutos do BCE (…) durante dez anos. Portugal pagaria à cabeça um juro de 0,25%, o mesmo que o BCE aplicou ao empréstimo de €55 mil milhões ao Hyppo Bank”.
E, finalmente, sobre o que acontecerá se não negociarmos em breve: 
“Se não negociarmos já, estaremos a fazê-lo dentro de seis meses de joelhos. Toda elaboração prospectiva que fazemos da evolução da economia, dívida, desemprego leva-nos a crer que Portugal entrará em graves dificuldades de controlo social dentro de um semestre”. 
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